O que é “racismo científico”?

04/04/2024 09:59

“Racismo científico” é uma ideia forjada no contexto moderno-colonial nos séculos XVIII e XIX, tida à época como uma inovação para a compreensão da diversidade da espécie humana na busca pelo registro das diferenças entre os modos de existência dos povos humanos. Essa ideia trazia concepções deterministas e biologizantes impostas pela representação de um pretenso “sujeito universal” que seria a referência primordial do que é “ser” “humano”. Essa ideia implicou na construção e representação pública de crenças e valores desde um racismo “dito” científico, baseada em crenças etnocêntricas, discriminatórias e violentas.

Dessa forma, o que é reconhecido como “racismo científico” foi um paradigma que serviu de explicação escalar para as diferenças socioculturais presentes na humanidade, a partir do ponto de vista único, exclusivo e excludente do homem, branco, europeu, cristão, cisgênero e proprietário como ser humano universal. Essa visão de mundo orientou a formulação de argumentos políticos, econômicos, religiosos e morais acionadas como justificativa para invasões, exploração e subjugação de diferentes povos, especialmente populações indígenas, africanas, asiáticas, ciganos; e grupos sociais como mulheres, pessoas com deficiências, pessoas trans e outros grupos minorizados.

Fortemente refutado desde sua formulação, com críticas relativas a sua diacronia, ignorância, intolerância e limitação, foi na antropologia que suas inferências teóricas foram questionadas do ponto de vista metodológico. A crítica permitiu demonstrar que tal “ciência” trazia imprecisões que produziam explicações tendenciosas e inverídicas, pois punham sob análise contextos sociais e culturais que não poderiam ser meramente justapostos e comparados desde uma escala evolutiva, mas devidamente contextualizados em suas próprias condições e manifestações.
Antropólogos como alemão Franz Boas (1898) e o haitiano Joseph Anténor Firmin (1885), traziam suas contribuições científicas ainda nos finais do século XIX, demonstrando as inconsistências e limitações dos escritos da tradição evolucionista na antropologia social. Essa abordagem propunha escalas de evolução dos grupos humanos de acordo com etapas pré determinadas para sua transformação e desenvolvimento, tendo como ponto final a própria sociedade européia do século XIX, que se projetava como a “civilização”, representação ideal do “progresso humano”.

Ainda que refutadas no bojo do campo científico desde sua formulação, aqueles que usavam da “ciência” como forma de poder para disseminar suas crenças e valores foram eficazes na propagação destas. Esses argumentos serviram como justificativa para legitimar e autorizar formulações políticas de estados nacionais e de grupos específicos que, em nome destes, promoveram e ainda promovem, invasões, colonização, escravização, extermínios, guerras e genocídios, sustentada por uma pretensa superioridade moral, étnica e racial.

As perspectivas que tomavam o “racismo científico” como referência também contribuíram para a construção de estigmas que, ainda que já derrubados cientificamente, ecoam no senso comum, seja sob a forma de crença, opinião e/ou preconceito, na construção do sujeito criminoso e em práticas que buscam desumanizar indivíduos específicos e certos grupos de pessoas. Reflexos dessa presença podem ser identificados quando observados os dados de saúde e segurança pública no Brasil atual, por exemplo.

Pessoas negras figuram nas taxas mais altas de morte por doenças evitáveis no país, e na pandemia de covid-19 a letalidade de pessoas negras foi maior em cerca de 40%; na segurança pública, por uma política de drogas proibicionista, a violência policial promove o genocídio da população negra e seu hiper encarceramento. Mulheres negras são as vítimas potenciais de feminicídios, e jovens negros e indígenas o que mais cometem suicídios. Todos esses dados refletem séculos de violências, rupturas e tentativas de desumanização e demonstram a urgência de uma ciência antirracista .

A 4ª edição do ciclo de eventos Fazendo cruzos com Antropologias, Artes e Museologia trará um aprofundamento da noção de “racismo científico” desde uma perspectiva crítica. Assim iremos (re)pensar sobre a ética, a estética e comunicação científica, desde a universidade pública pela qual e onde lutamos, produzimos e defendemos – apesar da branquitude e dos resquícios ainda presentes do racismo científico. Ao ocupar e incorporar, buscaremos transformar as áreas verdes do CFH/UFSC como uma forma afirmativa de produzir conhecimento, e tendo a diversidade como base. Assim, problematizaremos os espaços de aulas diante de quadrados brancos e estéreis, rumo a uma co-construção afetiva na produção de saberes que atravessem corpos para além do meio acadêmico científico – por uma sociedade antirracista.

LEITURAS RECOMENDADAS:

  • BOAS, Franz. (1896) As limitações do método comparativo em Antropologia.
  • CASTRO, Rosana. (2022). Pele negra, jalecos brancos: racismo, cor(po) e (est)ética no trabalho de campo antropológico. Revista De Antropologia, 65(1).
  • FIRMIN, Joseph Antenor (1885). A igualdade das raças humanas: antropologia positivista.
  • PINHO Osmundo. (2019). A Antropologia no espelho da raça. Revista do PPGCS – UFRB – Novos Olhares Sociais | Vol. 2 – n. 1 – 2019
  • ODA , Ana Maria Galdini Raimundo e DALGARRONDO, Paulo. Juliano Moreira: um psiquiatra negro frente ao racismo científico. Brazilian Journal of Psychiatry [online]. 2000, v. 22, n. 4, pp. 178-179
  • SCHWARCZ, Lilia Moritz. (1994) Espetáculo da miscigenação. Estudos Avançados 8 (20): 137-152.